A presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Noemia Porto, defende a adoção de benefícios fiscais às empresas durante a crise causada pela pandemia do coronavírus, mas com a exigência de contrapartidas.

Entre elas, a garantia da manutenção dos empregos e o compromisso de garantir um nível remuneratório digno para a totalidade dos trabalhadores.

Sobre a medida provisória que o governo deve enviar ao Congresso permitindo a redução da jornada e dos salários, a magistrada considera preocupante o fato de a flexibilização trabalhista ser unilateral. “A Constituição prevê flexibilização de jornada e de salário, mas desde que tenha participação do sindicato. A crise não pode ser uma carta branca para os empregadores agirem do jeito que quiserem”, disse.

As declarações, feitas durante o webinar promovido pelo JOTA para discutir como as instituições estão sendo afetadas pelo coronavírus, vão de encontro às sugestões feitas por grande confederações, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Na quarta-feira, a CNI propôs ao governo federal alterar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para “permitir que as empresas estabeleçam unilateralmente a redução de jornada e de salário, de forma proporcional”. A entidade também pediu que fosse modificado o percentual da redução de jornada e salário proporcionais, previstos no art. 503 da CLT, que trata de força maior. A CNI exemplificou: “adotando o percentual de até 50% (o texto atual fixa a redução em no máximo 25% do efetivo)”.

Na quinta-feira (19/3), a companhia aérea Gol cortou em 35% a jornada dos colaboradores internos e aeroviários, além de reduzir remunerações e benefícios.

OIT

A juíza lembrou que o Brasil ratificou a convenção 98 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata da aplicação dos princípios do direito de sindicalização e de negociação coletiva. “O Brasil já foi alertado três vezes pela OIT de que não pode adotar medidas de negociação direta. O diálogo social entre empregador, trabalhador e estado continua sendo, mesmo nesse ambiente de crise, a melhor alternativa”.

Como a demanda por acordos deve ser grande, a magistrada destacou que a Constituição prevê que a Justiça do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho podem atuar como árbitros coletivos. “E nós, da Anamatra, nos colocamos abertos ao diálogo para tentar levantar informações que auxiliem trabalhadores e empregadores”.

A preocupação principal do Poder Judiciário no momento, de acordo com a magistrada, é definir como será a dinâmica nos próximos dias. “Há dúvidas de como vamos fazer os atendimentos emergenciais e como retirar os riscos de contaminação nos polos no Brasil inteiro”. Para a juíza, o momento exige que os magistrados atendam, ainda que à distância, todos os casos.

Ao ser questionada sobre as medidas já anunciadas pelo governo, Noemia Porto avaliou que o valor que será oferecido aos trabalhadores informais é baixo: “Haverá muita polêmica com relação ao valor de R$ 200, que coloca o trabalhador abaixo da linha da miséria”.

Teletrabalho

O webinar também abordou um aspecto desencadeado pela crise do coronavírus: o teletrabalho. Muitas empresas que não têm a cultura do teletrabalho passaram a adotá-lo de maneira inédita para evitar o contágio dos trabalhadores. A presidente da Anamatra avalia que não é preciso fazer adequações na lei diante do aumento no número de pessoas trabalhando em casa. “Não vejo as exigências previstas por lei como travas, mas sim como garantias do marco regulatório do teletrabalho”, afirmou a magistrada.

Entre as exigências, está um aditivo contratual estabelecendo o teletrabalho e a determinação de que as empresas disponibilizem um mínimo instrumental para a realização do trabalho à distância.

Ao falar de projeções de efeitos do coronavírus no emprego, a magistrada citou um relatório formulado nesta semana pela OIT que prevê um quadro mundial entre 5 milhões e 25 milhões de desempregados após a pandemia de coronavírus. “Quanto mais rápido os países agirem, os efeitos serão menores. Sobre o Brasil, temos a desconfiança de que os trabalhadores dos setores mais precários serão aqueles que vão sofrer primeiro”, disse.

Uma sugestão da juíza é que as empresas adotem o banco de horas negativo, com o trabalhador se ausentando agora e fazendo as compensações quando tudo voltar à normalidade.

MP do Contrato Verde e Amarelo

Outro tema tratado foi a aprovação nesta semana do relatório da comissão mista no Congresso que analisou a medida provisória 905/2019, chamada de MP do Contrato Verde e Amarelo. Para ela, é uma falsa premissa dizer que flexibilizar na legislação do trabalho gera empregos no país.

O texto retira as restrições previstas na CLT para o trabalho em domingos e feriados. “Essa medida provisória é praticamente uma segunda reforma trabalhista e me pareceu inadequada sua aprovação na comissão neste momento de crise”, disse a juíza. “Estamos falando de trabalhar domingos e feriados sendo que não há empregos para todos.”

Confira a íntegra da nota:

NOTA PÚBLICA

A ANAMATRA – Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho -, representativa de quase 4 mil magistrados e magistradas do Trabalho de todo o Brasil, vem a público manifestar seu veemente e absoluto repúdio à Medida Provisória nº 927/2020, que dispõe sobre “medidas trabalhistas” a serem adotadas durante o período da pandemia Covid-19 (“coronavírus”).

1. Na contramão de medidas protetivas do emprego e da renda que vêm sendo adotadas pelos principais países atingidos pela pandemia – alguns deles situados no centro do capitalismo global, como França, Itália, Reino Unido e Estados Unidos-, a MP nº 927, de forma inoportuna e desastrosa, simplesmente destrói o pouco que resta dos alicerces históricos das relações individuais e coletivas de trabalho, impactando direta e profundamente na subsistência dos trabalhadores, das trabalhadoras e de suas famílias, assim como atinge a sobrevivência de micro, pequenas e médias empresas, com gravíssimas repercussões para a economia e impactos no tecido social.

2. Em pleno contexto de tríplice crise – sanitária, econômica e política , a MP nº 927 lança os trabalhadores e as trabalhadoras à própria sorte. Isso acontece ao privilegiar acordos individuais sobre convenções e acordos coletivos de trabalho, violando, também, a Convenção nº 98 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A medida, outrossim, torna inócua a própria negociação, ao deixar a critério unilateral do empregador a escolha sobre a prorrogação da vigência da norma coletiva. Afirma-se a possibilidade de se prolongar a suspensão do contrato de trabalho por até quatro meses, sem qualquer garantia de fonte de renda ao trabalhador e à trabalhadora, concedendo-lhes apenas um “curso de qualificação”, que dificilmente poderão prestar em quarentena, e limitando-se a facultar ao empregador o pagamento de uma ajuda de custo aleatória, desvinculada do valor do salário-mínimo. A norma, outrossim, suprime o direito ao efetivo gozo de férias, porque não garante, a tempo e modo, o adimplemento do 1/3 constitucional. Também como se fosse possível institucionalizar uma “carta em branco” nas relações de trabalho, a referida MP obstaculiza a fiscalização do trabalho, conferindo-lhe natureza meramente “orientadora”.

3. Ao apenas pedir o sacrifício individual das pessoas que necessitam do trabalho para viver, a MP nº 927 indica que soluções que impliquem em pactos de solidariedade não serão consideradas, tais como a taxação sobre grandes fortunas, que tem previsão constitucional; a intervenção estatal para redução dos juros bancários, inclusive sobre cartão de crédito, que também tem resguardo constitucional; a isenção de impostos sobre folha de salário e sobre a circulação de bens e serviços, de forma extraordinária, para desonerar o empregador.

4. A Medida Provisória nº 927 retira dos trabalhadores e das trabalhadoras as condições materiais mínimas para o enfrentamento do vírus e para a manutenção de básicas condições de subsistência e de saúde. E, na contramão do que seria esperado neste momento, não promove qualquer desoneração da folha ou concessão tributária – com a exata e única exceção do FGTS, parte integrante do salário. Há omissão, que se converte em silêncio injustificável, quanto à proteção aos trabalhadores e às trabalhadoras informais. É notável a desconsideração sobre a justiça e a progressividade tributárias. Ademais, a forte, e necessária participação estatal, assumindo parte dos salários, não aparece como solução.

5. As inconstitucionalidades da Medida Provisória nº 927 são patentes. A Constituição de 1988 deve ser invocada sobretudo nos momentos de crise, como garantia mínima de que a dignidade dos cidadãos e das cidadãs não será desconsiderada. A Constituição confere à autonomia negocial coletiva, e aos sindicatos, papel importante e indispensável de diálogo social, mesmo, e mais ainda, em momentos extraordinários. Estabelece a irredutibilidade salarial e a garantia do salário-mínimo como direitos humanos. Adota o regime de emprego como sendo o capaz de promover a inclusão social. Insta ao controle de jornada como forma de preservação do meio ambiente laboral, evitando que a exaustão e as possibilidades de auto e de exploração pelo trabalho sejam fatores de adoecimento físico e emocional.

6. A presente crise não pode, em absoluto, justificar a adoção de medidas frontalmente contrárias às garantias fundamentais e aos direitos dos trabalhadores. Impor a aceitação dessas previsões, sob o argumento de que ficarão todos desempregados, não é condizente com a magnitude que se espera do Estado brasileiro. Os poderes constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário – e a sociedade civil são corresponsáveis pela manutenção da ordem constitucional. Em momentos como o presente é que mais se devem reafirmar as conquistas e salvaguardas sociais e econômicas inscritas, em prol da dignidade da pessoa humana e do trabalhador e da trabalhadora, do desenvolvimento sócio-econômico e da paz social.

Brasília, 23/03/2020
Noemia Porto – Presidente da ANAMATRA

Fonte: Portal JOTA